terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Kerb no Morro dos Bugres

Kerb no Morro dos Bugres

Por Felipe Kuhn Braun

Quando os imigrantes alemaes chegaram ao sul do Brasil no começo do século XIX, decidiram que fariam algo para se manterem unidos e preservarem seus costumes para as próximas gerações. Além de manterem o idioma, a alimentação, a fé, de confissão católica ou luterana e o zelo pela educação, fizeram o Kerb.

O Kerb é uma festa que acontece uma vez por ano em cada localidade de origem alemã, é uma festa tradicional do Hunsrück, região de onde vieram a maior parte dos imigrantes, mas que hoje não acontece mais na Alemanha. Cada localidade fundada pelos alemães católicos tinha um padroeiro, e era na data de seu santo protetor, que a comunidade se reunia em um dia inteiro de festa. Isso acontecia apenas uma vez por ano e a festa era realizada nas casas do lugarejo, tradicionalmente primeiro havia uma missa, depois cada um ia para sua casa, porém a casa ficava repleta de parentes que vinham das comunidades vizinhas, e cada família se reunia e celebrava junta a festa do padroeiro, as músicas alemãs, as histórias de família, os acontecimentos da comunidade.

As casas eram relativamente grandes até entre as famílias mais modestas, afinal todos tinham proles numerosas, geralmente de oito a doze integrantes, mas havia famílias com até dezoito filhos! Quase todos os imigrantes e seus descendentes eram agricultores, tinham suas terras e a alimentação era mais barata. Dias antes os homens das famílias já se reuniam para abater os bois, porcos e frangos, as mulheres para fazerem as cucas, bolinhos de batata, roscas, bolachas pintadas, alimentos que são tradições de seus antepassados e que trouxeram para o outro lado do atlântico. Nunca vinha uma família inteira para o Kerb, alguns parentes moravam muito longe e a maior parte deles tinha terras e animais a cuidar, portanto vinha um ou alguns representantes de determinada família. Eles acomodavam seus cavalos nos estábulos e dormiam de um dia para o outro na casa dos irmãos, pais, cunhados.

Jean Roche, um historiador francês que veio para o Brasil na década de 1970 para pesquisar sobre a emigração alemã por esses lados, ficou impressionado com a fartura dessas festas sobretudo na alimentação e na bebida, ficou impressionado com o consumo de cerveja, a bebida oficial dos teuto-brasileiros.

Principalmente a partir da década de 1960 as famílias foram para as cidades, diminuiu a presença no campo, o custo de vida aumentou, os jovens que chegaram as cidades tinham que trabalhar, estudar, as famílias já não se reuniam como outrora, porém devido a facilidade dos meios de locomoção podiam se ver mais vezes durante o ano, quanto ao idioma muitos ainda falavam o alemão, porém já na década de 1940 com a censura de Vargas, durante 1938 a 1945 era expressamente proibido falar alemão nas colônias e isso já fez com que muitas famílias não ensinassem mais seu idioma materno a seus filhos. Os costumes foram se perdendo, a igreja perdeu sua influencia, o idioma não era mais conhecido por todos e as festas foram acabando ou enfraquecendo, nem todas as comunidades já realizavam os Kerb e as novas gerações que já não tiveram o idioma alemão como primeira língua e cresceram na cidade, nem conhecem muito da culinária, da história, dos costumes alemães.

Foi então a partir da década de 1980 que mais pessoas se interessaram em pesquisar sobre suas famílias, no interior não se fazia isso, dificuldades financeiras, muito trabalho e falta de conhecimentos específicos, propiciavam um esquecimento da história pouco a pouco. Com o avanço dessas pesquisas os genealogistas fizeram um resgate de nomes, datas, fotografias, objetos, de dezenas de famílias do sul do Brasil, aos poucos o interesse aumentou e também a facilidade para pesquisas como a internet, a vinda de mais alemães para turismo no sul, forneciam contatos e informações do velho mundo afinal muitos queriam saber de que regiões da Alemanha vieram seus ancestrais e descobrir nomes a datas dos antepassados europeus, o que sobrou ainda depois de tantas guerras lá no velho mundo, as da Alemanha perdem-se no tempo e enchem-se algumas mãos ao contá-las.

Aí os pesquisadores e familiares interessados pela história das famílias foram além e começaram a promover festas de famílias. Reuniam-se algumas informações, procuravam-se os endereços dos parentes, ao menos os que ainda mantêm o sobrenome, o que é relativamente fácil com as listas telefônicas na internet. Contatavam os religiosos da família, encontrava-se um salão em alguma comunidade do interior e pronto, em um dia ou um final de semana se reuniam todos, primeiro em uma missa, depois em um almoço, baile a noite, e um almoço no outro dia ainda. Mais ou menos nesse modelo surgiram as festas de família, geralmente bianuais, algo muito semelhante ao Kerb de antigamente.

Mas ainda hoje, quase 200 anos depois da chegada dos primeiros imigrantes, em pleno século XXI algumas comunidades ainda realizam seus Kerb, uma delas é Morro dos Bugres, distrito do pequeno município de Santa Maria do Herval, que virou notícia há alguns anos atrás por ser a cidade com melhor distribuição de renda do Brasil, vizinha de Morro Reuter, a segunda cidade do país com o menor índice de analfabetismo. Morro dos Bugres é uma comunidade muito interessante, uma das primeiras fundadas por alemães do sul do Brasil, seus fundadores eram todos católicos e já na década de 1850 construíram uma igrejinha tão resistente que existe até hoje. Na verdade seu nome originalmente nada tem a ver com índios, o local foi povoado em seu início pela família Bucher, e ali era chamado pelos vizinhos de Bucherberg, morro da família Bucher, os registros antigamente eram feitos pelos portugueses que enfrentavam dificuldades nas grafias alemãs recheadas de tremas, consoantes e palavras impronunciáveis, assim também foi com essa comunidade que passou a ser compreendida pelos escrivoes da época como Morro dos Bugres a assim seu nome mudou e se oficializou dessa forma afinal o que é escrito geralmente se perpetua com o tempo.
Para chegar a Morro dos Bugres é preciso pegar uma estranha sem pavimentação alguma, fruto do descaso dos políticos gaúchos com os colonos que tanto trabalham.

A comunidade é muito semelhante a outras fundadas por alemães no sul, tem uma igrejinha católica, ao lado o salão da comunidade, em frente o cemitério onde repousam alguns dos imigrantes que fundaram a localidade. Ao lado do cemitério uma pequena escola que infelizmente encontra-se fechada há uns oito anos, é um exemplo do que estudamos nos livros, hoje os casais tem menos filhos, e muitas famílias se transferiram para as cidades, comunidades como Morro dos Bugres tem muito poucas crianças.

Ao lado do salão há um bar e armazém que pertence a família Moraes. Interessante que essa família possui integrantes em várias comunidades do interior, os Moraes têm feições de alemães e alguns nem sequer falam português. As pessoas se perguntam por que no meio de uma comunidade onde antigamente só moravam alemães, no meio dos Weber, Dapper, Siedekum, encontra-se os Moraes que se dizem alemães, e de fato são de origem alemã, porém eles tinham um antepassado português que foi para o interior de origem alemã, esse portuga casou com uma alemã, teve 12 filhos, 104 netos...com uma prole tão grande pode se ter uma idéia do tamanho da família ali no interior. Várias gerações se passaram desde esse primeiro Moraes, único luso que morava entre os alemães daquela região, um de seus descendentes, Eugênio Moraes, foi um dos primeiros proprietários do armazém em uma época em que não existiam os grandes mercados nem as facilidades de locomoção, ele era responsável por provir a comunidade com alimentos e fazia constantes viagens a duas cidades importantes já em sua época, Caxias do Sul, na serra e Porto Alegre, a capital do Estado.

Além disso Eugenio foi professor, catequista e músico, tinha uma voz muito bela e suas partituras encontram-se com alguns descendentes, o professor Moraes faleceu em 2002 na comunidade que acolheu para ser seu lar, onde educou seus dez filhos, netos e filhos da comunidade. Eugênio ainda escreveu pouco antes de falecer com a abençoada idade de 90 anos, lúcido e com saúde, um pouco e sua vida, onde conta um pouco sobre si e Morro dos Bugres.
A filha de Eugenio, Noêmia, também foi professora na comunidade, a última antes da escola ser fechada. Noêmia continua depois de aposentada a participar ativamente na igreja, nas comunidades do interior já se sente a falta dos padres, em Morro dos Bugres as missas acontecem uma vez por mês, em outras épocas acontecia todo final de semana. Mesmo assim Noêmia abre a igreja todos finais de semana e junto com seus vizinhos e outros habitantes da localidade realiza orações e cantos em português e alemão. A igreja pequena, de mais de 150 anos, ainda abre as portas todos os finais de semana, por ali já passaram gerações e gerações naquele lugar perdido no interior.

O padroeiro de Morro dos Bugres é São Francisco Xavier e a festa da localidade acontece sempre em abril. O Kerb lá é similar aos de antigamente, sempre é durante um final de semana, no sábado no meio ou no final da tarde é celebrada a missa. Logo após a missa quase toda a comunidade se dirige ao salão onde é feita uma grande janta de Kerb. Os homens já no dia anterior preparam a carne para o churrasco, marcante na culinária gaúcha e as mulheres lavam e cozinham as batatas, ovos, cenouras, para a maionese, fazem as cucas e preparam a salada que será servida no sábado, rabanete, tomate, alface e o tradicional chucrute, repolho azedo. No sábado enquanto o padre celebra a missa e a comunidade reza unida, no salão ao lado da pequena igreja, vários senhores já assam a carne para a janta que acontecerá a noite. Na missa canta se Grossen Gott, wir loben dich, Maria zu lieben e outros cantos tradicionais alemães, a missa termina e alguns ainda conversam em frente à igreja, a maioria já se dirige rapidamente para o salão com seus cartões para a janta.

Durante a janta as pessoas se reencontram, amigos, famílias, apreciam um gostoso churrasco com cuca e maionese e uma variedade de saladas, o costume alemão é misturar os doces com salgados. Bebem refrigerantes, mas, sobretudo cerveja! Diversas marcas, gostos e sabores e muita cerveja! Logo após a janta vem o baile, músicas alemães, as tradicionais músicas de bandinha, as músicas antigas da velha pátria dos antepassados, marchinhas e música gaúcha também! O baile vai até tarde regado a cerveja, a janta com muita carne e cuca, conversas no Hunsrück Deitsch dialeto que ainda se fala em Morro dos Bugres e região. Os bailes duram até quase a manhã do dia seguinte. No domingo acontece o Kerb nas famílias. É um tanto diferente daquele que acontecia antigamente, hoje às famílias são menores, mas a fartura nas casas continua, são servidas várias sobremesas, almoços e cafés em quase todas as casas da localidade.

O Kerb irá desaparecer com o tempo e o grande espaço será das festas de família caso estas continuem, ainda hoje essas festas servem de exemplo para encontro e confraternização de amigos e famílias, uma idéia antiga, do velho mundo, aperfeiçoada pelos antepassados imigrantes que chegaram a um país desconhecido com a vontade de crescer, educar seus filhos e ter uma vida melhor, poderem se reunir todos os anos para lembrar-se da pátria mãe e dos costumes dos ancestrais. Que ainda hoje, quase 200 anos, ainda se mantêm sobretudo no interior do Rio Grande do Sul, fazem parte de um Brasil que muitos brasileiros não conhecem e que deixaram grandes marcas culturais na América Latina.

Um comentário:

Unknown disse...

Minha Avó Paterna tem o sobrenome De Moraes e também era bem Alemoa loira 👱 nasceu no Interior de São Pedro do Sul.Deve ser do mesmo Ramo Destes MORAES. GIOVANI BANDERA DOS SANTOS . DE Santa Maria RS.